Com quase 40 anos de existência, a Internet criou novos espaços de acumulação primitiva. Hoje, a mina dos podcasts ainda está em processo de extrativismo. Porém para diagnosticar o que tem de bom e de ruim, é importante avaliar um breve histórico da internet. Ela foi pensada para ser aberta e o capital muitas vezes vai contra isso, ou se aproveita disso em detrimento de uma comunicação mais democrática.
Quando inventaram o tal do HTML, ferramenta que ainda é a alma da internet, o link era uma ferramenta de citação bibliográfica. Tinha um objetivo acadêmico e de classificar a informação. Até meados dos anos 2000 o link tomou um papel social na internet: um blog dava link pra outro, para uma página na wikipédia, para um flogão… Mas este não é um texto sobre nostalgia. Até porque eu não peguei essa época “velho oeste” da internet. O link servirá de base para descrever um processo que acontece com vários aspectos da internet. Mais para o final do texto, falaremos dos podcasts.
Até poucos anos atrás, a experiência com o link era de descoberta, a tal da navegação na internet. A internet era feita de links. Apps e espertofones — que usam a infraestrutura da internet sem se basear nos links — eram novidade, coisa de rico.
No início da década passada, um tal de Facebook estava começando a ameaçar desbancar o orkut como rede social de fato do Brasil. Em 2011, criei meu perfil para ajudar meu pai, que estava começando um negócio de fotografia. Desde essa época, para o facebook, o link era inimigo1. Os posts com link tinham o último lugar na fila do algoritmo. Ah, o algoritmo
! Palavra que entrou no vocabulário do povo. Pelo menos para quem já era incluído* digitalmente.
O link era a internet, então o facebook também resolveu atacar a própria2 em 2013 com o internet.org também conhecido como “free basics”, que foi proibido na Índia em 2016 por ser contra a neutralidade.
Este é um projeto de longo prazo de acumulação primitiva de capital. Da mesma maneira que na origem do capitalismo houve um processo de acumulação primitiva para o surgimento da burguesia enquanto classe dominante. Desde que a internet se tornou um ambiente acessível, a burguesia age nesse ambiente acumulando e dominando os “espaços online”. Se no “mundo desenvolvido” o facebook já lidera o mercado, a sua expansão só é possível de acontecer onde as pessoas não foram incluídas*.
Ainda neste processo de acumulação, há uma tendência de acumulação pela desapropriação3 que pode chegar a ferramentas da internet onde ela está consolidada. Por ataques à neutralidade da rede ou mesmo privatizações injustificáveis. Um resumo deste conceito de acumulação pela desapropriação seria o capital explorar um bem comum da população como forma de acumulação privada. Há nos EUA um projeto de lei que impede o equivalente a Receita Federal estadunidense de criar e manter o próprio software público de declaração do imposto de renda. Na prática, isso desapropria um bem comum e obriga cada cidadão a pagar por um software que possibilite a declaração de seus impostos.
Para a década que se inicia, o momento é de amadurecimento da internet. Enquanto nos países da periferia do capitalismo, ela vai sendo introduzida por meio de medidas de acumulação, novas tecnologias estão surgindo que tornam muito mais difícil uma contra-hegemonia que seja de fato democrática. Vou listar alguns exemplos aqui, todas capitaneadas pela empresa muito legal que promete não fazer mal ao mundo conhecida como Google:
- stories do snapchat foi para todas as redes e agora está disponível para qualquer site como uma tecnologia “open web”
- AMP, que é disponibilizado por servidores da google, apesar de ser “open web”
- PWAs, que tornam sites mais parecidos com apps nativos de celular, agora estarão disponíveis na Play Store, da google
Estas tecnologias, por mais interessantes que sejam, criam um ambiente em que para ser relevante na internet anti-link de hoje você se adapte ao ambiente criado por estas empresas. Até mesmo as ferramentas que se usa hoje para programar para a internet, salvo raras exceções, são ou do facebook ou da própria google.
# Inclusão* Digital
Talvez o leitor tenha notado o * ao lado da palavra inclusão, acima. No texto de estreia deste site, cheguei a mencionar que não temos de fato uma inclusão digital no Brasil. Após a popularização do acesso a espertofones baratos com zapzap sem franquia decente de internet, o termo deixou de ser mencionado. Não existe um plano que de fato inclua 55% da população brasileira que, ainda em 2017, achavam que a internet é o facebook. É necessário para ontem um projeto de inclusão digital democrática nos países chamados “em desenvolvimento”. Não essa inclusão pelo consumo.
No sul global, há uma massa populacional a ser “incluída” pelo consumo. O que nos torna alvos para essa exploração. Não é coincidência que o Brasil é constantemente escolhido como local de testes de novas funcionalidades das redes sociais, como no caso dos “fleets”.
# Finalmente, a parte sobre podcasts
Para incluir as pessoas na internet de maneira democrática precisamos de alternativa tecnológica (infraestrutura), mas também militante (superestrutura). Na parte tecnológica, o feed é algo que tem potencial de ser descentralizado, compatível com várias tecnologias “clientes”, que consomem o feed para exibí-lo ao internauta. Por isso, não é um latifúndio como o youtube, que só poderia ser de fato democratizado na base da expropriação mesmo. O feed RSS foi criado pelo Aaron Schwartz numa reivindicação de uma internet “aberta” sim, mas também democrática. Se você, leitor dinossauro da internet, usa algo como o Feedly para ler seus conteúdos por aí, o meu site tem um feed 😉.
Na parte militante, já existe uma cacetada de podcasts excelentes. Desde 2017 se promete que “ano que vem será o ano dos podcasts”. E, olha só, podcasts usam a tecnologia do feed. Isso significa que muitas aplicações clientes diferentes podem usar e há potencial de migração de uma para outra. Porém, aqui o caldo começa a esquentar.
Como apontou a PodPesquisa, mais de 40% dos ouvintes de podcast estão usando o Spotify. E o Spotify não é uma dessas tecnologias “clientes” quaisquer. É uma plataforma do capitalismo de vigilância, tal qual YouTube e outras redes. Não tem a ideia aberta do feed no Spotify, e eles têm planos grandes4 de acumulação.
Com esta grande ameaça em mente, acho importante estabelecer pontos básicos para os podcasters que se interessarem poderem criar suas próprias estratégias. De início, diferenciar quando se usa a palavra plataforma da palavra agregador: Spotify e Soundcloud são plataformas, já o Podcast Addict ou Google Podcasts são agregadores. Plataforma é quem acumula para distribuir em massa, com algoritmos de recomendação, quebrando a lógica aberta do feed. Agregador é a “aplicação cliente” que consome os feeds que o próprio internauta escolheu previamente de maneira orgânica.
Outra questão importante é como se portar ao divulgar seu próprio podcast. A maioria dos podcasts independentes usa muito a frase “estamos no Spotify e outros agregadores”. Além da diferenciação técnica (mas também política) que apontei acima, será interessante mesmo chamar um público que ainda não é incluído digitalmente a ouvir numa plataforma que muito provavelmente não podem pagar? Seria positivo a mídia independente se submeter a lógica da inclusão apenas pelo “consumo” de mídia? A maioria da população ainda não sabe o que é um podcast. Esse público será exposto aos anúncios da plataforma. Muito provavelmente no futuro estes anúncios serão inseridos de maneira não orgânica no meio dos podcasts (já está acontecendo em alguns casos) e isso impacta na maneira de como a informação chega nessas pessoas. Em algum episódio recente do Lado B do Rio, o painelista Alcysio mencionou que episódios antigos deles não aparecem no Spotify. Essa empresa já não é amigável com os independentes.
Dentre as plataformas, talvez exista uma alternativa ao Spotify. Muito recentemente, durante a escrita deste texto, foi lançada a plataforma orelo. Mesmo sendo plataforma, não me parece ter a proposta monopolista do Spotify, oferecendo pagar os produtores por execução de cada episódio, se for exclusivo na plataforma deles, ou coisa assim. É recente, confesso que ainda não entendi a proposta 100%, ouvi falar por alto no último episódio do pontapé. É esperar para ver.
# Promover inclusão digital com podcasts independentes
Mesmo que existam plataformas ou empresas que tornem a economia em volta dessa mídia mais viável (sendo monopolista ou não), o objetivo aqui é promover uma atitude de inclusão digital por meio dos podcasts independentes. Todas as outras formas de mídia no Brasil estão completamente tomadas e praticamente não existe democracia. Temos aqui uma oportunidade.
Como este texto tem proposta teórica e prática, deixo uma sugestão: muitos podcasts, ou famílias de podcasts, tem uma iniciativa muito legal de ter o seu próprio tutorial explicando a mídia5. Porém no Brasil isso não é comum. Não consegui encontrar esta página em sites como os da central3, half deaf e outros. Isso é uma pequena atitude que poderia ser adotada pelos podcasts independentes.
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A web que precisamos salvar, pelo jornalista iraniano Hossein Derakhshan, traduzido em português pelo youpix. Aqui o original em inglês ↩
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O facebook é a globo do mundo, texto meu, originalmente publicado no medium em 2016 ↩
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Acumulação pela desapropriação, no podcast Anti-Capitalist Chronicles, do David Harvey ↩
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“Spotify não está tentando apenas dominar os podcasts, mas se tornar o YouTube do audio” Spotify isn’t trying to take over podcasting, but rather become the YouTube of audio ↩
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A estadunidense gimlet tem um ótimo tutorial sobre como ouvir podcasts no seu site. ↩