Depois de décadas existindo, muita gente ainda acha que a Internet é algum tipo de selva. Talvez um estado natural da humanidade em que não existe estado, lei ou proteções individuais. No Brasil, mais ou menos nos últimos 5 anos o número de pessoas com acesso à Internet ultrapassou o número de pessoas que não possuem acesso a Internet. Com isso, cada vez menos se ouve falar na tal da inclusão digital. A inclusão no nosso Brasil neoliberal é uma inclusão pelo consumo. Hoje, ter um espertofone é o suficiente pra dizerem: bem-vindo ao clube, aqui está a Internet. É a pessoa fica ao Deus dará. Só que no caso os deuses são os monopólios internacionais como Google, Apple, Amazon e Facebook. Aí está a Internet e ponto. Mataram o super herói conhecido como hiper-link. O acesso é majoritariamente por um celular android que já vem Facebook e adjacentes instalado, já que Instagram e WhatsApp são do Marquinho, mesmo dono.
we really need to move towards a consensus as a society that algorithms changing things behind your back because they think they know you better than you do is emotionally abusive
— badidea 💫 (@0xabad1dea) March 9, 2019
Tradução: Nós realmente preciamos nos mover na direção de um consenso enquanto sociedade de que algoritmos mudando coisas pelas suas costas porque pensam que sabem mais do que você é emocionalmente abusivo.
Nesse contexto surge a necessidade de um debate sobre consentimento e software. Sem informação sobre com a Internet funciona - e consequentemente sobre como poderia funcionar - não se pode dizer que um cidadão faz uma escolha consciente de usar essas ferramentas entendendo realmente como elas funcionam. Como já disse Noam Chomsky, num sentido coletivo o consentimento é forjado a partir de como as estruturas de uma sociedade são estabelecidas. Se tentamos pensar a Internet como um novo espaço da sociedade, os “Termos de Serviço” são um importantíssimo elemento de como isso vem sendo feito.
Acho interessante ilustrar essa situação com um exemplo real que aconteceu com este que vos escreve. Num esforço de ter escolhas mais conscientes, estou abandonando o Gmail por completo e migrei para o ProtonMail. Depois de uma semana de e-mail novo, fui comprar uma passagem de ônibus para outra cidade no clickbus. Era sexta-feira e eu estava no trabalho, então no meio do processo de escolher assentos e preencher dados pessoais, larguei o computador e fui para uma reunião que durou uns 40 minutos. Antes de voltar para o computador, olhei meu e-mail no celular e para minha (nem tanta) surpresa lá estava um email do clickbus, num desses esforços de tentar vender passagem pra quem parou no meio do caminho.
Eu ACABEI de criar um e-mail novo. Bom pra reparar quais empresas ficam de putaria com você. A @ClickBusBR por exemplo, me mandou um e-mail sendo que eu NÃO CONCLUÍ A COMPRA. pic.twitter.com/YcdxjQQjHR
— Jimi not my cup of tea (@wtfgraciano) March 8, 2019
Por favor releve meus palavrões no twitter
Eu, como escritor de software, deveria dizer que isso é uma prática comum. Você faz login na livraria, enche o carrinho de produtos e não conclui a compra. Algum tempo depois vem um e-mail te lembrando disso. Pode ser incômodo, mas aí tem algo que o ~usuario~ espera: ao fazer um login, você conscientemente informa seu e-mail para o ~sistema~ e espera certas respostas do mesmo. Não era meu caso com a clickbus, porque não havia login. E era impossível eles saberem meu e-mail por compras anteriores uma vez que eu havia acabado de criar o e-mail novo.
Notem que no meu exermplo da livraria, o consentimento para que eu receba um e-mail e entre no processo de marketing é assumido. Eu como usuário espero que a livraria vai me mandar e-mails porque eu concordei em cadastrar meu e-mail em algum lugar, mas também porque no caso descrito é útil, é uma ~funcionalidade~ do sistema: me lembrar de um carrinho de coisas que talvez eu realmente queira comprar. Em outros casos, não é útil, mas se eu marquei a caixinha de “aceito receber novidades sobre X” eu sei que receberei o tal do e-mail marketing.
Consentimento é tudo na vida. Vídeo com legendas em português (clique na engrenagem).
Consentimento em software, e consequentemente na internet, não pode nem deve se basear apenas numa suposta carta branca em que eu escrevo previamente e aceito tudo. Como no exemplo do chá do vídeo, a pessoa precisa ser informada que vão fazer algo com seus dados pessoais. Por exemplo, se eu te mostro um anúncio baseado na sua idade, ou CEP, ou qualquer outra informação que a pessoa nem sabe que eu tenho, ou como consegui, eu preciso dizer como e porque. No senso comum se repete muito (até entre profissionais da área) que se algo é de graça “você é o produto”. Não é uma mentira, de fato o que se torna um bem comerciável são dados sobre padrões comportamentais de uma pessoa. O que ela já fez determina em algum nível o que ela faria no futuro. E alguns negócios pagam por isso. Mas nem toda pessoa entende como isso funciona. Eu mesmo já coloquei anúncios em alguns sites populares por aí por causa da profissão e não tive acesso ao processo completo, pra ficar nesse exemplo do anúncio.
Por padrão se deveria pedir consentimento. Quem tem poder tem responsabilidade, não o usuário. Antes de ser usuário, estamos lidando com uma pessoa, um cidadão. É muito injusto a postura cínica do “você é o produto” em que não se pode reivindicar um mínimo de direitos. Individualizar a responsabilidade para o usuário não deveria ser normal. Contra a inclusão digital, exclui quem não conhece a internet de maneira devida, além de uma solução covarde e preguiçosa. Eu não aceito os termos de serviço. Nem mesmo quem programou o sistema os leu.